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Nem tudo que reluz é ouro e nem tudo o que está publicado em revistas científicas indexadas com revisão de pares é boa ciência. Com o surgimento da pandemia de Covid-19 várias pessoas fizeram uso do argumento: “eu também sei ler artigos científicos e tenho artigos que refutam estas medidas“.
Infelizmente:
- Para compreender artigos científicos não basta saber ler.
- Para aceitar um artigo científico como fiável não basta que este esteja publicado numa revista científica indexada com revisão de pares.
- Para que haja progresso do conhecimento científico é necessário que haja constante revisão sistemática da literatura com análise crítica e discussão entre especialistas que, em muitos casos, dedicam toda a sua carreira a um determinado assunto; contudo, não é requisito que haja debate entre pessoas que fazem a sua própria pesquisa na internet e que “também sabem ler artigos científicos“.
O problema não é novo e, como noutras situações, a pandemia de Covid-19 ampliou o fenómeno. Vários artigos científicos depois de publicados são retraídos, ou seja, classificados como não sendo cientificamente fiáveis. Convém clarificar que a revisão de pares implica, normalmente, apenas o parecer de dois revisores e o acordo de um membro da equipa editorial – segue-se a publicação. Atenção: os pré-prints não têm sequer revisão de pares.
A retração de artigos científicos acontece em todas as revistas científicas e em todas as áreas científicas desde há muito tempo. Um dos casos mais mediáticos remonta a 1982, na cardiologia: o caso Darsee. Os motivos para a retração podem ser vários como: erro, dados inconsistentes, fraude ou má conduta científica.
Um dos exemplos recentes aconteceu ontem a 14 de dezembro. Um artigo que foi usado como um dos principais argumentos contra as medidas de confinamento foi retraído. Neste momento a lista de artigos científicos sobre Covid-19 retraídos é já longa e conta com, pelo menos, 203 artigos.
A pandemia por Covid-19 suscitou na comunidade científica grande mobilização para contribuir para a solução e parece-me justo afirmar que o fez bem. No entanto, há várias lições a retirar de tudo o que aconteceu nos últimos dois anos. A quantidade de publicações que surgiram neste período, a forma como (em muitos casos não) foram revistas criou algum ruído.
Felizmente:
- A opção de manter toda essa literatura em acesso livre possibilitou uma maior vigilância crítica por parte da comunidade científica e facilitou o processo de separação do trigo do joio.
- Algumas iniciativas de revisão, pós-publicação, entre pares que já se esboçavam timidamente foram aceleradas e com grande aceitação; veja-se, a título de exemplo: o ranking de literatura Covid-19 que a Publons desenvolveu que combina um score de classificação pelos seus utilizadores com o famoso Almetric.
- Globalmente, os especialistas em Saúde Pública não se deixaram afetar pelo clima de incerteza científica sobre o novo vírus e utilizaram, e bem, o conhecimento consolidado na área sobre a gestão de pandemias para travar cadeias de transmissão e “achatar a curva”, ganhando tempo precioso aos Serviços Hospitalares.